terça-feira, 30 de junho de 2009

X Sessão

A emergência de um cânone literário africano
na época pós-colonial:
o fim do eurocentrismo em literatura?


fercris77@gmail.com
Investigadora do CLEPUL e do IECCPMA
Mestre em Estudos Africanos


30 de Junho de 2009 - Espaço CompaRes - 18h 


O pós-colonialismo salienta a ambivalência e a hibridez entre o discurso do colonizador e o discurso do colonizado, já que não são pensáveis um sem o outro. A hibridez pode alterar as relações de poder entre os sentidos dominantes e os sentidos dominados. A identidade pós-colonial, ao romper com a distinção clara entre a identidade do colonizador e a identidade do colonizado, tem de ser construída na margem das representações, num espaço onde é negociada e construída a diferença cultural. Estudando o escritor, não podemos ignorar essa condição da criatividade que se assenta sobre o confronto com o diverso, o estranho, o outro. Esse confronto, essa dialéctica estão presentes nas obras apresentadas, uma escrita durante o período anti-colonial de guerra e outra posterior, escrita num período pós-colonial, de dois escritores angolanos envolvidos no processo de independência de Angola.
          Mayombe, obra escrita por Petetela entre 1970/71, o confronto com o "outro" dá-se dentro de um grupo de guerrilheiros de diversas etnias, mas também com o inimigo de batalha. Em Rioseco, do escritor angolano Manuel Rui (1994), o confronto dá-se igualmente dentro de um espaço quase fechado, uma ilha (que afinal é uma península), cosmogónico, entre os fugitivos de guerra e os habitantes da ilha.
        Mayombe encena um lugar iniciático, no verdadeiro sentido do termo, pois que engendrador de uma nova maneira de pensar e de agir, que revoluciona os corpos e as mentes, de passagem da fase colonial à investidura da liberdade, de treino físico dos militares que se preparam para a guerra, de exercício ideológico, travado em torno da reflexão acerca das razões políticas da luta. Mayombe é um lugar de excelência, onde se revitaliza as energias, se enterram os mortos, se revestem de estatuto de heróis os vivos. Rioseco situa a acção numa ilha desconhecida, com uma cartografia indefinida, senão inexistente, igualmente mostrando-a como um lugar iniciático, de inícios e finais, de sucessivos recomeços, onde as personagens são permanentemente testadas na sua aprendizagem, na sua passagem pela vida.
          A proposta de Pepetela, em Mayombe, é a fusão entre os elementos mítico-simbólicos africanos e ocidentais, procurando dar lugar a uma linguagem que, por um lado, ultrapasse o valor étnico (Ogun, divindade africana), e adquira uma representatividade mais ampla, africana, tal como Prometeu simboliza não apenas o legado da mitologia grega, mas também de todo o Ocidente. Desta comunhão cultural resulta uma síntese que guarda não só as características particulares da sua origem como a expressão universal da sua significação. Do mesmo modo, Manuel Rui inscreve na sua obra uma ilha representativa do cosmos africano, ao mesmo tempo que representa uma ilha universal, um lugar qualquer por onde todos temos de passar pelo menos uma vez, como num verdadeiro ritual iniciático.
          O espaço é sempre antropomorfizado, em ambos os casos. O Mayombe é uma floresta cerrada, impõe-se como força anímica, mãe-natureza que desafia o avanço dos militares. A ilha de Rioseco parece fechada, as personagens que lá entram não sabem como voltar para terra. Em Mayombe o contacto dos guerrilheiros com a natureza começa por ser de domínio e transforma-se depois em permuta de forças. Assim, a relação homem-terra, após os primeiros confrontos, torna-se comunicante, a floresta passa a ser o centro energético, regenerador. Também a ilha de Rioseco, aparentemente calma, revela o caos interno das suas personagens, que questionam o passado e procuram o futuro. A metamorfose dos heróis de Mayombe é a mesma das personagens de Rioseco, o caminho é o mesmo de toda a humanidade: o sofrimento, a compreensão da realidade que os circunda.
        Em conclusão, aquilo que pode definir e individualizar as literaturas africanas pós-coloniais lusófonas é o projecto que lhes subjaz, o de investigar a apreensão e a tematização do espaço colonial e pós-colonial e o de interferir nessa contínua representação. Esses significadores são potencialmente produtivos, dizendo respeito à busca de uma identidade nacional como uma construção a partir de negociações de sentidos de identidades regionais e de compromisso de alteridades. O que as literaturas africanas têm avançado como ideia central é que nestes tempos pós-coloniais as identidades (nacionais, regionais, étnico-rácicas, culturais, ideológicas, estéticas, estilísticas) advêm da capacidade de aceitar diferenças.



Bibliografia de referência:
BHABHA, Homi K., The Location of Culture, London & New York, Routledge, 1990.
BLOOM, Harold, O Cânone Ocidental, trad. Manuel Frias Martins, Temas & Debates, 1997.
CRISTÓVÃO, Fernando (coord.), O Olhar do Viajante: Dos Navegadores aos Exploradores, Lisboa, Almedina, 2003.
LEITE, Ana Mafalda, Literaturas Africanas e Formulações Pós-Coloniais, Lisboa, Colibri, 2003.
PEPETELA, Mayombe, 5.ª ed., Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1993.
RAMALHO, Maria Irene e RIBEIRO, António de Sousa, Entre Ser e Estar: Raízes, Percursos e Discursos da Identidade, Porto, Afrontamento, 2002.
RUI, Manuel, Rioseco, Lisboa, Cotovia, 1997.
SAID, Edward W., Orientalismo: Representações Ocidentais do Oriente, trad. Pedro Serra, 2.ª ed., Lisboa, Cotovia, 2004.
SANCHES, Manuela Ribeiro (org.), Deslocalizar a Europa: Antropologia, Arte, Literatura e História na Pós-Colonialidade, Lisboa, Cotovia, 2005.








Fotos: Fernanda Cristina Santos apresentando o seu trabalho; e com o livro oferecido pelo Círculo no final da sessão, em reconhecimento da sua participação na Academia de Jovens Investigadores.

2 comentários:

  1. Mas só tem o título da sessão? Começo por dizer que não concordo com o título. Como é que um cânone africano pode fazer a literatura deixar de girar em torno da Europa? Onde é que está o Homero africano, o Virgílio africano, o Shakespeare africano?

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  2. Caro Ricardo, o objectivo da sessão do Círculo era questionar o fim do eurocentrismo em literatura, não afirmá-lo, dái o ponto de interrogação. O colóquio é aberto a todas as questões. A literatura africana convoca questões semelhantes à ocidental, europeia, convocando o cânone como forma de afirmação da sua identidade, todavia criando novos padrões literários - sobre os quais se poderá informar, caso seja do seu interesse - de recuperação da identidade africana, das suas raízes e fundamentos. Este novo cânone pode efectivamente ajudar a que a literatura deixe de girar em torno da Europa.

    Atentamente,
    Fernanda Santos

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